04 de Março de 2017
  • Correio do Povo
  • Caderno de Sábado
  • EFEMÉRIDE
  • P. 3
  • 170.00 cm/col

Jean Baudrillard, sofista pós-moderno

Professor fala da trajetória do pensador francês e da sua inclassificabilidade pela área do pensar

Sabe-se que a partir da era burguesa, século 18, tentou-se com a formação cultural e as virtudes civis preencher a função que a religião perdera como meio de regramento das relações humanas e princípio de instituição da pessoa. Sinais todavia não faltam de que, onde a modernidade se impôs, este tempo passou. Vive-se agora, no Ocidente, em meio à sociedade predominantemente individualista, na qual o egoísmo e o desejo de poder atomizados se apoderaram dos relacionamentos, e a moralidade cada vez mais assume a forma do cinismo mesquinho e narcisista. Jean Baudrillard granjeou fama nos círculos intelectualizados como teórico do que, para fazer critica da cultura, ele chamou de simulacros. Para nós, é outra a perspectiva — sua obra importa na medida em que mostra o espanto e originalidade com que se pode reagir moralmente à época que se tornou a nossa.

A relevância não está em suas teorias, mas na maneira ao mesmo tempo provocadora e sem ressentimento como ela elabora o desgosto, a decepção que é, para a consciência moral desiludida, ciente de seu anacronismo, o fracasso de nossa espécie em concretizar seus maiores ideais. Destino do autor parece ter sido pensar, mas isso ele só o conseguiu com originalidade porque desenvolveu a arte de escrever do modo único com que alguém se torna Jean Baudrillard. Rara é a linha de sua obra cujo sentido não seja ficcional, mas também não seja impactante e genial. Quase não há sentença que não seja especulativa, mas fora a que um acadêmico, reunindo e articulando esboços, poderia desenhar, nelas todas não se elabora ou transmite nenhuma filosofia. Baudrillard foi destes homens cujo brilhantismo intelectual nos impede de enquadrá-los nas categorias mais usuais.

Apesar dos títulos e classificações, não foi sociólogo, muito menos filósofo, como indica sua rejeição pelos porta-vozes das categorias. Na verdade, o autor conheceu um só ofício: escrever; e não desenvolveu mais que uma vocação: pensar. Numa época de indigência espiritual, poucos foram, nesse sentido, tão criativos. Paradoxalmente, no entanto, ele não foi o que se toma normalmente por filósofo. Amparando-se vagamente em Mauss, Bataille, Cioran e outros, ele remeteu suas análises à noção essencialmente esotérica e idiossincrática de “ordem simbólica”, sem contudo chegar a propor a devida teoria, porque, em sua obra, tudo é ideia, mas não há um sistema de pensamento. As pretensões iniciais em elaborar uma sociologia do consumo ou desenvolver teoria crítica do signo social não foram longe. Em tudo o que o autor escreveu sobre o simulacro, há pouco ou nada, fora a radicalização da tese e a novidade do jargão, que vá além do que, sobre o espetáculo, já nos dissera seu rival Guy Debord.

Significa que, em Baudrillard, toda a força está na retórica. O luxo da escrita esconde as deficiências de argumentação. São muito poucos os textos que resistem à análise mais superficial. O fato, porém, não significa que sua obra seja irrelevante ou que não devamos retornar a seus pensamentos. Após deixar a Universidade, Zygmunt Bauman se tornou guru da classe média intelectualizada de todo o mundo requentando em banhomaria ideias que, anunciadas genialmente por Marx, fizeram a fama de Simmel no início do século 20. Alcançou popularidade, afirmando de modo gasoso o que seus leitores desejavam ouvir, em vez de tentar jogá-los na dúvida e pô-los a refletir. Baudrillard foi pensador de muito maior calibre intelectual, apesar de, mal ou bem, ele igualmente ter se tornado pop, em que pese suas menções ao simulacro terem, na recepção, adquirido efeito similar ao que, na fonte, possuía a chave de entendimento universal que era a referência à liquidez no autor polonês.

Para ele, pensar era algo de enorme valor, que não se confundia com a crônica destinada a servir de consolo mas, por outro lado, só se pode admitir estando fortemente estilizado, escrito de modo a provocar fascínio e espanto. Mago da palavra, o autor foi uma espécie de sofista pós-moderno, para o qual o homem deixou de ser medida de todas as coisas, conforme, na velha Grécia, dizia seu predecessor prémoderno Protágoras. O poder que a palavra tem de não apenas dar sentido à existência mas nos seduzir, talvez nenhum pensador contemporâneo tenha dominado como o conseguiu Baudrillard. Só isso explica a resposta às vezes entusiasta, noutras muito negativa que, entre o público pensador de cultura, não deixou de obter um autor cujos pensamentos foram se tornando cada vez mais esotéricos e disparatados, após sua obra começar a ser difundida, em meados dos anos 1980.

Nietzsche pretendera retornar à sofística para destruir o platonismo que, segundo ele, corrompera moral e intelectualmente nossa civilização. Baudrillard seguiu seus passos, todavia evitando a doutrina da vontade de poder com que o alemão ajudou a elaborar uma nova metafísica. Em seu ver, o poder que exercemos uns sobre os outros paradoxalmente tende a desaparecer com o aprofundamento de nossa experiência na modernidade. O poder individual vira ilusão, vertigem narcísica, em tempo no qual nossa sorte cada vez mais depende da enorme caixa preta em que se tornaram o conhecimento científico e a tecnologia maquinística. Assim ocorre, porém, que a vida se converte em sistema a tal ponto, que já não há mais como pensar de onde sairiam as pessoas capazes de transformálo em algo menos atroz à consciência formada de acordo com as aspirações iluministas com que nossa época emergiu. Sobre as relações humanas avança um deserto, em meio ao qual vivemos como figurantes de terceira classe, pelo menos desde a ótica dos que, em seus dias de ingenuidade, gozaram daquelas aspirações ou delas se imbuíram como utopia, como era o caso de Jean Baudrillard.

Somos agora todos mais ou menos prisioneiros do fetichismo da mercadoria e das engenhocas mais ou menos atraentes que ela nos disponibiliza. Por isso, sustentou o autor, a crítica e a pregação perderam a condição de meios com que se pensava poder mudar nossos padrões de relacionamento e identidade. Gostemos ou não, nos tornamos órfãos dos intelectuais que poderiam nos apontar alternativas ou criar novos valores; e ele, em que pese os apelos dos seguidores e seus escorregões nas armadilhas da vida acadêmica e mundana, fez tudo para não ser. Baudrillard só criou a obra que dele conhecemos porque, diversamente de tantos outros, não cometeu a ingenuidade de pensar que poderia ser o que sua reflexão ajudou a proibir. Em seus textos, o ponto forte não está na crítica, mas no comentário espirituoso e pontual, às vezes posto em frases isoladas, mas devastadoras a respeito das cenas cotidianas em que agora estamos jogados e assistimos por todos os lados. A maneira de ver as coisas é irônica, em vez de critica; reclama a interpretação inusitada e perturbador a , em vez do juízo condenatório.

Será forte a decepção do leitor que procurar seus escritos visando obter consolo para o que, aos olhos do autor, se perdeu de vez. “Sorria, sempre”, pedimos silenciosamente uns aos outros, mas isso, sabemos cada vez mais, ele lembra, é para tornar mais leve nosso vazio, encobrir com simpatia nossa indiferença essencial com relação aos outros. As telas que instalamos por toda a parte, em vez de nos abrirem o mundo, são uma maneira que encontramos de nos mantermos ligados apenas a nós mesmos, esconder a falta de solidariedade radical que marca uma época cujas criaturas se orgulham de possuírem automóveis e acasalarem com seus aparelhos celulares, se não serem vulgares e poderem defender egotisticamente sua estupidez. Para Baudrillard, a teoria perdeu a radicalidade crítica, seu potencial transformador, na medida em que o avanço da era moderna, responsável pela sua criação, acabou com os sujeitos que poderiam pô-la em prática, articulá-la de maneira promissora. Do Maio de 1968, rito de passagem geracional que ele converteu em divisor de época, nada mais nos resta do que a orfandade.

Suas utopias se perderam, não nos cabe mais, como pensadores, senão elaborar o desgosto que tudo o que veio depois causa aos que, como ele, foram delas deserdados. Como em Heidegger, admite-se em seus escritos que salvação há, mas não para todos e à revelia do que possamos fazer, pois, entrevista na poesia e na arte, sua é a salvação que nasce dos imprevistos da sedução e se conserva no segredo. Em sua obra, as palavras fascinam e, acompanhadas de sorriso discreto, cortam na alma — o que move o espírito, contudo, é a atitude do moralista que, incapaz de seguir crendo em nossa capacidade de arrependimento e libertação, nos propôs as ideias mais extremas, agora que, para nós, não restaria em seu ver outro exercício intelectual que não o de explorar com ironia o fracasso dos sonhos que foram, para os modernos, os mais belos e generosos.

* Professor dos Departamentos de Comunicação e Filosofia da PUCRS e de Comunicação da Ufrgs

Para Baudrillard, a teoria perdeu a radicalidade crítica, seu potencial transformador...