14 de Setembro de 2020
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Obstáculos e soluções no EAD

O turbilhão de mudanças gerado pelo coronavírus a partir de março impactou instituições de ensino de todos os níveis, das redes pública e privada. Em poucos dias, professores e alunos tiveram de se adaptar a um modelo completamente novo de aprendizagem: as mesas e cadeiras foram trocadas por telas de computadores ou de celulares, por onde passou a fluir o conteúdo ensinado.


Se a adaptação foi difícil para toda a comunidade escolar e acadêmica, alunos com deficiências precisaram voltar a enfrentar barreiras que, antes, pareciam em parte superadas. Sem o contato presencial, as dificuldades aumentaram, principalmente no trato com plataformas e ferramentas digitais.


Experiências


ZH ouviu cinco alunos com deficiência que estudam em universidades gaúchas para entender como estão lidando com a rotina de aulas online.


Esses relatos não representam toda a comunidade, mas, em suas individualidades, compartilham experiências mais amplas.


Além disso, a jornalista Cris Lopes, produtora na Rádio Gaúcha e estudante de Direito na UFRGS, escreve sobre sua experiência com o Ensino Remoto Emergencial da universidade (veja abaixo o link para esse texto).


Depoimentos


Franciele


A vida escolar de Franciele Brandão, 33 anos, foi com papel e caneta, apesar da miopia. Aos 18, no entanto, um descolamento de retina deu início a um processo que a fez perder a visão - hoje, consegue apenas perceber a claridade e a escuridão. A partir daí, precisou reaprender a ler e a escrever, desta vez em braile, a andar com bengala e a mexer no computador e no celular de outra forma. Moradora de Porto Alegre, Franciele está no 6º semestre de Psicologia na Imed. Única aluna cega da turma, precisou passar por desafios extras: - Não conseguia ter acesso à plataforma da universidade porque o meu leitor de tela (software que lê, em áudio, os textos) não lia o botão que eu precisava clicar para entrar. De certa forma, o leitor passava por cima daquele botão e não identificava. Tive que entrar em contato com a equipe técnica para dizer que o site não estava sendo acessível. Mas eles foram bem receptivos. Em alguns dias funcionou.


Franciele diz que não está sendo prejudicada e que consegue acompanhar as aulas e fazer as atividades, mas algumas barreiras ainda precisam ser superadas. Segundo ela, há casos de professores que usam apresentações em imagens, sem a necessária descrição da figura - o que é só feito após sua intervenção, e alguns textos vêm, inicialmente, em formatos não acessíveis. De acordo com a Imed, o ambiente virtual de aprendizagem se adapta às limitações visuais e auditivas e permite a interação do aluno com o professor. Rafael


Formado em Administração, o bancário Rafael Martins dos Santos, 42 anos, está no 6º semestre de Direito na PUCRS. A doença degenerativa da retina, descoberta aos 18 anos, piorou e, hoje, ele tem baixa visão. Com a tela em alto contraste e letras grandes, consegue enxergar algumas informações no computador. Mas materiais acadêmicos são lidos com auxílio do leitor de tela:


- Já avançou bastante, mas noto que os professores, por vezes, não estão assim tão habituados a passar conteúdo para uma pessoa com deficiência. Fazem muito PowerPoint e falam "como estamos vendo aqui...", e eu não estou vendo nada. Outros não, são superpreocupados.


Inicialmente, Rafael teve dificuldade para se adaptar à plataforma utilizada pela PUCRS. Depois, com ajustes feitos, passou a solicitar versões em texto para materiais visuais, o que é produzido pelo Núcleo de Inclusão da universidade. A grande dificuldade foi fazer as provas. Na ferramenta oferecida, ele não conseguia identificar onde acabava o campo de resposta de uma questão e onde começava o outro. E passou a entregar provas em documento de texto. - A PUCRS tem um tempo de resposta muito bom. Me dá suporte, e indica a solução - diz Rafael.


A PUCRS diz que tem um Núcleo de Apoio à Educação Inclusiva, que confecciona materiais adaptados, acolhe famílias e estudantes e orienta coordenadores a buscar o melhor formato pedagógico.


Gabriel


Os primeiros dias de aula de Gabriel Lazzari, 23 anos, foram turbulentos. Com professores ainda buscando as melhores ferramentas, ele teve dificuldades. Só na mudança de semestre o jovem, que tem Down, passou a ter facilidade: - No início da pandemia, ficou difícil acompanhar as aulas. Neste semestre, está tranquilo.


Gabriel está no 8º semestre de Educação Física no Centro Universitário Metodista IPA. Ele diz sentir falta da sala de recursos, que promove atendimento especializado para pessoas com deficiência. Os profissionais ajudam a facilitar o entendimento de provas ou trabalhos. - A minha psicopedagoga me ajuda desde 2016 até a faculdade. Na pandemia, estou sendo orientado pelo meu pai - diz.


Juvêncio Lazzari, aposentado, aproveita o período em casa para acompanhar o filho: - É normal que a turma tenha enfrentado algumas dificuldades porque a plataforma não era tão satisfatória no início. Isso apesar de todos o esforço que os professores fizeram, que é elogiável, em termos de buscar recursos e tecnologias.


Em nota, o IPA confirma que a sala de recursos está fechada em respeito aos protocolos, mas diz que o Núcleo de Apoio Pedagógico segue acompanhando e assessorando os estudantes e familiares. O núcleo orienta professores para adaptações necessárias.


Bruno


Com o apoio da intérprete Ida Cristina Miranda Gondin, GZH conversou, por vídeo, com o estudante Bruno da Silva e Souza, 20 anos. Surdo, ele faz uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar. Morador de Canoas, está no 2º semestre de Ciências Biológicas (bacharelado) na Universidade La Salle. Mesmo no ambiente online, Bruno tem seu direito garantido: todas as aulas contam com intérprete de Libras. - Se o intérprete falta, rapidamente alguém substitui. Na hora - conta.


Pessoas surdas se apropriam do texto em português de forma diferente de ouvintes, e a escrita não é feita da mesma forma. Bruno, muitas vezes, usa dicionário para entender os textos que os professores passam. Essa dificuldade é superada com ajuda do intérprete nos horários de aula. O problema está quando alguns educadores pedem para que os alunos assistam a vídeos não acessíveis. - Em vídeos do YouTube, a gente ainda tem essa dificuldade, porque às vezes não há legenda. A gente sofre com essa falta de acessibilidade. Se não tem um dos dois (legenda ou intérprete), não tem comunicação. É impossível. Fico só olhando e não entendo nada. Me sinto muito triste - diz o estudante.


A La Salle diz que fornece apoio no ambiente virtual de todos os cursos e que garante intérprete de Libras em todos os cursos e que os materiais didáticos são adaptados com acompanhamento dos intérpretes que apoiam o aluno.


Tháviny


Também surda, Tháviny Nascimento de Morais, 20 anos, cursa o 4º semestre de Pedagogia Bilíngue (Português e Libras) na UFRGS. Apesar da mudança na vida pessoal causada pela pandemia, a vida acadêmica sofreu menor impacto: como o curso já é a distância, a jovem estava adaptada à rotina de aulas online.


O fato de a turma ser composta por muitos alunos surdos também ajudou. Segundo a estudante, a acessibilidade nas aulas é total - a maior mudança foi ter ficado tanto tempo sem atividades devido à suspensão determinada pela UFRGS: - A aula sempre foi acessível. É obrigatório. Mas me senti triste, nervosa, porque a faculdade foi fechada (por alguns meses).


Por meio da intérprete Ana Beatriz Seitz, da Associação de Crianças e Adolescentes Surdos do RS, Tháviny contou que a pandemia provocou grande transformação em sua vida. A jovem tem asma e está afastada do Tribunal de Justiça, onde trabalha. - Vou a locais como farmácia ou supermercado, e as pessoas usam máscaras. Não consigo enxergar, ver a expressão, os lábios. Fiquei me sentindo muito limitada - descreve.


Em nota, a UFRGS informou que disponibiliza em seu site série de orientações sobre acessibilidade e ensino remoto. Entre os materiais, estão orientações do Núcleo Incluir, que trabalha estratégias voltadas às pessoas com deficiência na comunidade universitária.