22 de Junho de 2019
  • Zero Hora
  • DOC
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A cidade subterrânea do lixo

Um município de 8 mil habitantes na Região Carbonífera é o destino final de quase 40% do lixo domiciliar produzido em todo o Rio Grande do Sul. A 90 quilômetros de Porto Alegre, Minas do Leão acabou virando sinônimo do aterro sanitário que abriga em seu território. É o maior do sul do Brasil e o sétimo em recebimento diário de todo o país.

A casca da bergamota que você comeu em Porto Alegre ou a borra do café que passou em Piratini, no sul do Estado, pegam a BR-290 até serem enterradas ali - e darem retorno de três formas diferentes à empresa responsável por esse processo. Vinte e quatro horas por dia, debaixo de chuva ou de sol, caminhões e carretas passam incessantemente pelos portões da Companhia Rio-grandense de Valorização de Resíduos (CRVR) carregando o lixo de 92 municípios gaúchos ou do sul de Santa Catarina.

Ao tentar visualizar esse lugar, o que vem à sua cabeça? Uma montanha de restos de comida e embalagens rodeada por moscas? Catadores trabalhando em condições degradantes? Quase consegue sentir o cheiro de podre?

A reportagem não constatou nada disso durante visita à Central de Resíduos do Recreio, o nome oficial do aterro de Minas do Leão. O primeiro olhar dos visitantes, quando entram na propriedade, é de um morro de grama aparada, dividido em camadas, ou níveis, que lembra um bolo de casamento. Trata-se de uma fase já finalizada do aterro, com 1 milhão de toneladas de lixo já tapado.

Na outra fase, a do aterro em utilização hoje, onde o lixo é depositado e compactado por máquinas e coberto com argila, os funcionários da empresa nem colocam a mão nos rejeitos. Os caminhoneiros que os trazem não saem dos veículos, e o fotógrafo de ZH foi impedido de se aproximar por regras de segurança. Apenas servidores autorizados, equipados com óculos, máscara, capacete, colete refletivo e uniforme, podem circular no local.

Nenhum rato ou barata foi visto pela reportagem - os domingos, único dia em que não há atividade na central, são dedicados à dedetização da área. Há mais de 150 hectares de floresta plantada ao redor do aterro, que servem de barreira visual e, também, para evitar que algum eventual odor se espalhe.

- O povo de Minas do Leão ficava em dúvida sobre como seria o aterro. Achava que seria um lixão. Mas não é assim, não tem lixo destapado. É tudo controlado. Se há algum cheiro na região, não vem daqui - diz Carlos Felipe Ribeiro Luis, 30 anos, morador de Minas do Leão desde que nasceu e funcionário do aterro há nove anos.

O local ainda tem uma particularidade considerada inovadora para o Brasil à época de sua instalação, em 2001, ao continuar servindo à atividade que marcou o desenvolvimento do município desde sua criação - Minas do Leão teve origem nas primeiras descobertas de carvão no século 19. O lixo é depositado no ventre de uma mina desativada. A ideia é preencher uma cratera de 75 metros de profundidade, chamada cava, resultante da extração de carvão na Mina do Recreio.

- É uma antiga área de extração que foi preparada, impermeabilizada, e está sendo recuperada com a disposição e tratamento final de resíduos urbanos. Era um espaço impactado pela mineração, e estamos devolvendo a topografia original. Depois, poderá servir a outro tipo de utilização - explica o engenheiro civil Henrique Antunes, coordenador da unidade, acrescentando que, quando acabar a vida útil do aterro (estimada em 23 anos), um parque para a comunidade ou a disposição de painéis de energia solar são algumas das possibilidades de aproveitamento do espaço.

Os efluentes líquidos (chorume) ainda são tratados e usados como água de reuso na lavagem do carvão da mineradora, empresa que tem participação na CRVR. Não há mais atividade de mineração em Minas do Leão, mas a empresa segue extraindo carvão em outros municípios da região e faz o beneficiamento do minério em área junto ao aterro.

A última nota obtida pelo aterro de Minas do Leão no Índice de Qualidade de Aterros Sanitários da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) foi 92 pontos, em um total de 100, sendo o destino final do efluente gerado um dos principais motivos de o aterro não obter resultado máximo. O diretor técnico da Fepam Renato das Chagas e Silva observa que essa prática, de vincular os líquidos do aterro à lavagem de carvão, é autorizada, mas recentemente o órgão passou a exigir que as duas atividades sejam desvinculadas para seguir um padrão de aterros novos. A empresa tem em andamento um processo de licenciamento para a instalação de uma estação nova de tratamento de efluentes. O prazo para conclusão das obras é dezembro.

Há, segundo a Fepam, em torno de 40 aterros sanitários no Estado (só a CRVR tem cinco unidades). Em 2015, o Rio Grande do Sul conseguiu eliminar totalmente a disposição de resíduos em lixões. Sem tratamento, cuidado ou controle sobre o tipo de material descartado, os lixões eram usados por 5% dos municípios até 10 anos atrás, tornando-se focos de contaminação do ar e das águas e de alimentação e abrigo de organismos vetores de doenças.

UMA ECONOMIA MOVIDA PELO LIXO

O lixo orgânico de que a gente só quer se livrar em casa acaba sendo essencial para a saúde financeira de Minas do Leão - o ISSQN pago pela empresa, a maior da cidade, corresponde a 18% da arrecadação municipal ao ano. Também gera 130 empregos diretos a moradores da região. A CRVR não divulga seu faturamento, mas apenas a prefeitura da Capital repassa mais de R$ 3 milhões por mês para lhe entregar o lixo de seus moradores. E dar o destino adequado aos resíduos domiciliares não é a única forma de a empresa ganhar dinheiro.

Mistura de metano, CO2 e outros gases, o biogás liberado pela decomposição da matéria orgânica do lixo vira energia limpa no aterro de Minas do Leão, único do Estado com usina termoelétrica. Há pelo aterro 100 drenos a até 60 metros de profundidade, com 10 quilômetros de tubos que captam o gás. Ele é sugado por uma espécie de aspirador de grandes proporções até a usina.

O processo para transformar esse gás em energia limpa é mais fácil do que parece. Primeiro, ele é tratado - é retirada a umidade e partículas que prejudicam os motores. Após, passa a mover motores gigantes, com funcionamento semelhante aos de carros. O gás é usado como combustível, queimado nos cilindros, e um gerador acoplado transforma a energia mecânica em elétrica.

Hoje há seis desses contêineres com motores, que representaram um investimento de R$ 30 milhões em 2015 e podem abastecer um município de 100 mil habitantes. Até 2020, a CRVR pretende investir mais R$ 15 milhões para comprar mais quatro motores e quase duplicar essa capacidade. A geração deve passar de 8,55 MW/h para 14,2 MW/h.

A solução evita odor (o biogás tem cheiro forte), reduz a emissão de poluentes, gera energia limpa e lucro para a empresa. Embora a energia seja levada por 27 quilômetros de rede até a subestação mais próxima da CEEE, na BR-290, e reforce o abastecimento de Butiá, Minas do Leão, Arroio dos Ratos, São Jerônimo e outros municípios da Região Carbonífera, ela vira crédito que pode ser vendido para qualquer canto do Brasil, graças ao chamado Sistema Nacional Interligado (SIN).

Até mesmo a poluição que o aterro deixa de lançar na atmosfera vira dinheiro em Minas do Leão. A queima do metano contido no biogás gera créditos de carbono, uma moeda que alimenta todo um mercado mundial voltado para a criação de projetos de redução da emissão dos gases que aceleram o processo de aquecimento do planeta. Ele surgiu com o Protocolo de Quioto, acordo internacional que estabeleceu que os países desenvolvidos deveriam reduzir suas emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) 5,2% em média, em relação aos níveis medidos em 1990.

Esse protocolo criou um mecanismo que prevê a redução certificada das emissões. Uma vez conquistada essa certificação, quem promove a redução da emissão de gases poluentes tem direito a créditos de carbono e pode comercializá-los com os países que têm metas a cumprir. O aterro de Minas do Leão faz isso: desde 2007, tem contratos em que é pago por signatários do Protocolo de Quioto que precisam "comprar" créditos de carbono em países em desenvolvimento - como o Brasil. Primeiro, fez negócio com o Japão, e, desde 2015, tem um contrato com o Banco Mundial. Outro aterro do grupo, em São Leopoldo, no Vale do Sinos, tem contrato com o governo da Noruega.

Cada crédito de carbono corresponde a uma tonelada de dióxido de carbono equivalente não lançada na atmosfera - em Minas do Leão, há uma redução anual em torno de 400 mil toneladas de CO2 equivalente, ou CO2eq. A CRVR não divulga o valor dos contratos, mas o engenheiro ambiental Tiago Nascimento Silva, gerente de operações de energia e gás da CRVR, relata que a tonelada já chegou a atingir 20 euros em 2008 (os contratos feitos pela empresa são a longo prazo, o que a protege das grandes oscilações de preço).

FALTA DE RECICLAGEM AINDA É UM PROBLEMA
De todo o lixo que Porto Alegre envia para Minas do Leão, 23% é caracterizado como potencialmente reciclável. Isso quer dizer que 260 toneladas de plástico, papel, metal e outros resíduos reaproveitáveis são enterradas todos os dias pela falta de separação nas casas dos moradores da Capital. Além de ir contra a preservação dos recursos naturais, uma vez que se deixa de economizar petróleo e árvores, por exemplo, isso representa desperdício de dinheiro de várias formas, como explica a engenheira química Mariza Power Reis, diretora de Destino Final do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). A começar pelo custo do combustível e do aterro, pago pelos contribuintes, para mandar o lixo a Minas do Leão.

Mariza relata que, ao colocar material reciclado no lixo orgânico, o cidadão torna inviável a separação e a reciclagem dele na Capital - seria muito caro fazê-lo. Isso pode reduzir a vida útil de um aterro, tornando necessário buscar mais áreas para o destino final de resíduos domiciliares, e deixa de somar na renda de centenas de famílias porto-alegrenses.

- A receita da comercialização dos recicláveis é destinada a 600 trabalhadores de cooperativas e associações de triagem, beneficiamento e comercialização desses resíduos. A renda dessas pessoas é proveniente da venda desse material. Fica em torno de R$ 1 mil - relata.

Nem mesmo para o aterro é vantagem receber materiais recicláveis, afirma Henrique Antunes. Porque esses rejeitos tendem a pesar menos (o aterro recebe por peso), ocupar espaço e não originam biogás, que gera receita pela queima do excedente e geração de energia (veja no quadro).

Em geral, o lixo que não é de origem animal ou vegetal ou não estiver contaminado (como papel higiênico e guardanapos usados) tem potencial para ser reaproveitado. Inclui papel seco, papelão, latas de alumínio, isopor, plásticos, metais, vidros e embalagens do tipo longa vida. Basta retirar o excesso de resíduos - nos casos das embalagens de alimentos - e separá-los para serem entregues à coleta seletiva, que tem dia certo para ocorrer.

Depositar resíduos recicláveis nos contêineres da cidade que são de uso exclusivo para orgânicos e rejeito é uma irregularidade considerada grave no Código Municipal de Limpeza Urbana - pode gerar multa de quase R$ 2,9 mil. Denúncias para que o Serviço de Fiscalização do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) possa abrir ação devem ser feitas pelo 156.