04/08/2018 Zero Hora Sua vida Pg. 30 As indústrias que a cidade espantou MUDANÇAS ECONÔMICAS LEVARAM para cidades vizinhas a vocação fabril de Porto Alegre. Em seu lugar, ficaram as lembranças das pessoas que moram em bairros criados pela industrialização do século 20 Ao longo de sua vida profissional, o aposentado Laudelino Borges Morales, 70 anos, trabalhou em três empresas com uma trajetória comum: todas se instalaram em Porto Alegre, prosperaram por vários anos - e fecharam as portas. A exemplo da Brahma, da Zivi-Hércules e da Metalúrgica Elfo, onde ele bateu cartão, dezenas de indústrias faliram ou abandonaram a Capital nas últimas décadas em um processo que, recentemente, levou a Gerdau a transferir sua sede para São Paulo e motivou a transferência da Taurus para São Leopoldo. Em alguns dos antigos endereços, ganham força outros negócios ou empreendimentos imobiliários, mas resta um desafio: fazer a cidade atrair novos investimentos e recuperar o espírito inovador que marcou os primeiros anos de industrialização. Muitos moradores da Capital desconhecem, mas a cidade era um dos principais polos produtivos do Brasil no começo do século 20. Em Porto Alegre nasceu a mais antiga marca de chocolates em atividade no país (Neugebauer), foram construídas algumas das primeiras geladeiras (Steigleder), surgiram os talheres de aço inoxidável (Hércules) e a primeira linha de produção de doce de leite (Mu-Mu), entre outras inovações. A maior parte das fábricas se localizava na Zona Norte, mas outras ocuparam quarteirões em bairros bem mais centrais como Moinhos de Vento, Floresta e Praia de Belas, dando à cidade um ar fabril mesmo onde hoje nem se suspeita de que havia máquinas ruidosas, chaminés fumegantes e milhares de operários batendo perna nas calçadas. - A industrialização de Porto Alegre esteve muito ligada à imigração alemã, e ganhou impulso porque a produção procurava atender ao mercado interno, e a Capital era um importante centro de distribuição para todas as cidades próximas e para a região da Colônia - esclarece o economista e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Pedro Silveira Bandeira, autor do ensaio A Desindustrialização de Porto Alegre: Causas e Perspectivas. Com o crescimento urbano, em um fenômeno semelhante ao que ocorreu em outras grandes capitais do país, as fábricas se viram impelidas a buscar áreas mais remotas, acessíveis e baratas - e deixaram para trás grandes espaços desativados. - A cidade cresceu e acabou espantando as indústrias. Eu costumo citar a Brahma (na Avenida Cristóvão Colombo, onde hoje funciona o Shopping Total) como exemplo: acabou ficando no meio da cidade, e tinha de receber cargas, distribuir produtos enfrentando engarrafamentos, em um terreno que ficou supervalorizado. Quando isso acontece, as fábricas começam a procurar opções menos onerosas - analisa Bandeira. O IMPACTO DAS POLÍTICAS FISCAIS Essas opções incluíram outros município ao longo de eixos como a BR-116, a freeway e a BR-386. Presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), Gilberto Porcello Petry concorda que a desindustrialização é uma consequência da urbanização, mas com influência de outros fatores como políticas fiscais: - A saída de indústrias das capitais é um movimento natural. A modernização produtiva, a ampliação das linhas de produção e a logística de matérias- primas e produtos finais são fatores que levam à busca de novas áreas. Cumpre também dizer que, muitas vezes, as políticas tributárias estimulam esse movimento, que é natural mas pode ser apressado ou intensificado por aumento de impostos municipais como IPTU e ISS. O aposentado Laudelino Borges Morales testemunhou esse fenômeno como poucos. Todos os seus antigos locais de trabalho deixaram de existir. - Dá uma tristeza ver que tudo isso deixou de existir. A Zona Norte era basicamente uma região industrial, e sempre tinha oferta de emprego em alguma fábrica - recorda. A maior parte do recuo das fábricas se concentrou entre os anos 1970 e 80, quando a participação de Porto Alegre no valor do ICMS industrial do Estado despencou em mais da metade: de 25%, em 1972, caiu para 11% em 1986. No ano passado, dos alvarás emitidos pela prefeitura para novos negócios, 0,4% se destinavam à atividade industrial - setor que ajudou a moldar a cidade dominada, hoje, por comércio e serviços. Capital "engoliu" as antigas fábricas Quem passa pelo cruzamento das ruas Marquês do Pombal e Doutor Timóteo, em uma das áreas de IPTU mais caro de Porto Alegre, no bairro Moinhos de Vento, pode não imaginar que o terreno tomado por prédios e lojas sofisticados também já foi chão de fábrica. Onde hoje existe um condomínio de edifícios, na década de 20 foi erguido o prédio onde funcionou por décadas uma fábrica de cigarros da Souza Cruz. Em muitos casos como esse, a cidade acabou crescendo tanto no entorno das velhas indústrias que acabou por forçá-las a buscar um novo local. Cozinheira há 38 anos da churrascaria Santo Antônio, localizada defronte ao antigo endereço da Souza Cruz, Ângela Pacheco, 59 anos, recorda como a fábrica movimentava o bairro. - Todos os dias, vinham pelo menos 50, 60 trabalhadores da Souza Cruz comer aqui. A gente chegava a sentir o cheiro de tabaco dentro do restaurante - lembra Ângela. Em alguns casos, a convivência entre novos moradores e velhas indústrias traz percalços. Antigo trabalhador da Taurus, na Avenida do Forte, Anestor dos Santos Galon, 76 anos, ajudou a projetar a unidade em São Leopoldo. Ele conta que, nos últimos anos, o crescimento no número de casas e prédios ao redor da fábrica na Capital estimulava reclamações. - As pessoas se queixavam muito do barulho de algumas máquinas e do pó. Antigamente havia muito poucas casas ao redor, mas a fábrica acabou ficando no meio da cidade. Como resultado disso, nós, a população, ajudamos a expulsar as indústrias - analisa Galon, presidente da Associação dos Metalúrgicos Aposentados de Porto Alegre. A Pepsi é outro exemplo de empreendimento instalado em um local onde hoje parece muito pouco provável que houvesse uma linha de produção - na esquina das vias Praia de Belas e Marcílio Dias, onde hoje existem um prédio comercial e outro de estacionamento junto ao Praia de Belas Shopping. Comércio e imóveis tomaram o lugar das grandes empresas Porto Alegre cresce, ainda hoje, sobre o terreno onde antigamente prosperaram grandes indústrias. O fechamento de fábricas deixou para trás grandes espaços em zonas antigamente pacatas, mas hoje bastante valorizadas para a construção de casas, prédios e estabelecimentos comerciais. Nos últimos anos, centros comerciais surgiram onde antes funcionavam célebres marcas como a fábrica de fogões Wallig (o shopping Bourbon Wallig, na Assis Brasil), a confecção Renner (DC Shopping) ou o prédio histórico onde já funcionaram as cervejarias Bopp, Continental e Brahma (atual Shopping Total, na Avenida Cristóvão Colombo). O antigo endereço da tecelagem Fiateci, junto à Rua Voluntários da Pátria, deu lugar a prédios residenciais e comerciais. Mas parte do terreno segue sem uso. Na área em que se localizava a Zivi- Hércules, entre a Assis Brasil e a Sertório, operários trabalham limpando a área e demolindo ruínas das antigas instalações. Segundo informações da incorporadora Melnick Even, responsável pelo terreno atualmente, está em estudo o desenvolvimento de um empreendimento residencial no local. Na Avenida Ipiranga, nas proximidades da esquina com a Salvador França, funcionava a fábrica da Mu-Mu onde o aposentado Marcial Antunes de Siqueira, 70 anos, trabalhou a partir do início dos anos 1980. Hoje, nas imediações, há prédios comerciais e um posto de gasolina. Mas, na década de 1960, quando os irmãos Henrique e Arno Vontobel instalaram a indústria de doces no local, a região era tão afastada e desatendida que mandaram construir tanques de lavar roupa no pátio para ajudar a vizinhança que não dispunha de água corrente. - Comecei trabalhando em serviços gerais, depois passei para a área de entregas. A gente chegava a entregar baldes de 30, 40 quilos de Mu-Mu até de carroça. Tínhamos seis cavalos. Mas, quando eu saí, já não havia mais as carroças. Tinham mais de 20 caminhões e umas quatro carretas - recorda Siqueira. Pioneirismo marcou a história econômica A história industrial de Porto Alegre é marcada por iniciativas de inovação e ousadia. Um dos exemplos do pioneirismo hoje é um prédio fechado no bairro Navegantes. Ali, onde há mato crescendo, um vigilante e uma dupla de cachorros brabos, já foram produzidos milhares de chocolates e doces a partir de 1904. Antes disso, em outro local do mesmo bairro, a família Neugebauer começou a fabricar as primeiras barras industrializadas do país conforme o livro Indústria de Ponta, editado pela Fiergs, sobre a história das indústrias gaúchas. Era 1891. Franz e Max Neugebauer, ao lado do sócio Fritz Gerhardt, começaram a fabricar chocolates e saíram a vendê-los, de porta em porta, sobre o lombo de cavalos. O aumento da demanda motivou a mudança para a fábrica da Avenida Cairu no começo do século 20, onde funcionou até esta década. Mariana Silva da Silva, 75 anos, testemunhou parte dessa história. Ex-funcionária da Neugebauer, ela ainda mora ao lado do prédio vazio deixado para trás no bairro Navegantes. - Havia uma variedade imensa de produtos que eram feitos aqui. Boa parte dessa vizinhança era tomada por gente que trabalhava na fábrica. Mas hoje já foi quase todo mundo embora - lembra Mariana. O pioneirismo porto-alegrense estendeu-se aos eletrodomésticos. Originada em uma carpintaria, a Steigleder produziu as primeiras "caixas de gelo" do país - uma espécie de baú de madeira com recipiente para colocar o gelo. Com sede na Voluntários da Pátria, também fabricou algumas das primeiras geladeiras elétricas, a partir da década de 1950. O gosto pela inovação provocou outro fenômeno: a disseminação da Pepsi em solo gaúcho por iniciativa de um português chamado Heitor Pires. Radicado no Brasil por volta de 1925, reuniu dinheiro e lançou em 1953 a primeira fábrica do refrigerante no país. Com um tino natural para o marketing, criou inúmeras estratégias de venda - como pintar os pontos de venda com as cores da marca, realizar promoções com tampinhas premiadas e associar a bebida a um estilo gaúcho e familiar, enquanto a concorrente Coca-Cola procurava se associar à "juventude transviada" da época. Como resultado, Porto Alegre era um dos únicos lugares no mundo em que a Pepsi vendia mais do que a Coca. A identificação com a fábrica local era tão grande que era comum, segundo o livro Pepsi-Tchê - A Grande Vitória da Pepsi na Guerra das Colas, gaúchos acreditarem que se tratava de uma marca gaúcha. Por isso, quando aparecia uma garrafa da Pepsi em algum filme americano, porto-alegrenses de peito estufado se orgulhavam de ver a bebida sendo vendida em outros países. Porto Alegre tenta atrair um novo perfil de indústria Incapaz de manter as fábricas tradicionais, com linhas de produção de grande porte, a Capital procura atrair um novo tipo de indústria a fim de aquecer sua economia. O foco é receber investimentos da chamada indústria criativa e de alta tecnologia, acolhida em espaços menores, mais urbanizados, com menor impacto ambiental ou necessidade de insumos. A cidade tenta reduzir a burocracia para abertura de empresas e oferecer benefícios fiscais e de índices construtivos. Mas os números ainda são tímidos se comparados aos de comércio e serviços. Em 2017, a cidade licenciou 111 empresas do ramo industrial, boa parte delas voltada à criatividade e à inovação. Entram nessa lista microcervejarias artesanais, produção de químicos, maquinário e componentes eletrônicos. As indústrias representaram, porém, apenas 0,4% dos alvarás emitidos em 2017. Do total das licenças, 63% foram para atividades predominantemente comerciais e 52% para serviços - a soma chega a mais de 100% porque um mesmo alvará pode contemplar mais de um tipo de negócio. A boa notícia é que, em 2017, foi licenciado um número 47% maior de indústrias na cidade do que em 2016, conforme a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico. E, apenas no primeiro semestre de 2018, o número de empresas ligadas à produção autorizadas a funcionar superou 160, o que leva a uma projeção de pelo menos 50% de crescimento em relação a 2017. - Oferecemos alguns benefícios fiscais, em áreas como o Quarto Distrito, mas temos percebido que os incentivos já não fazem tanta diferença. A atração está muito marcada pela eliminação de burocracia - acredita o secretário de Desenvolvimento Econômico de Porto Alegre, Leandro de Lemos. Segundo a pasta, empreendimentos de baixo risco estão com prazo médio de 48 horas para concessão, o que, segundo Lemos, seria o período mais curto já registrado. O secretário diz que unidades de alta tecnologia existentes na cidade, inclusive envolvendo universidades, como Tecnopuc e Tecnosinos, também favorecem a criação de um ambiente favorável à atração de futuros investidores. - Hoje, há uma nova indústria que se ajusta à urbanização, como aquelas de microeletrônica, indústria criativa e audiovisual - opina o presidente da Fiergs, Gilberto Porcello Petry. Lemos também espera que sejam aplicados cerca de R$ 7 bilhões em investimentos variados na cidade ao longo dos próximos anos, por meio de iniciativas envolvendo o aeroporto Salgado Filho, Pontal do Estaleiro, Cais Mauá, empreendimentos imobiliários, entre outros projetos, que seriam capazes de deixar Porto Alegre mais atrativa para os novos capitães de indústria do século 21. (Ver imagem - Petrobras)