19/11/2020 GZH | gauchazh.clicrbs.com.br Geral Romance de entretenimento? Nova categoria do Prêmio Jabuti reflete atual diversidade da ficção Coordenador da graduação em Escrita Criativa da PUCRS comenta a pluralidade e a qualidade da literatura brasileira e aposta: vamos dar um salto ainda maior nos próximos anos Em sua 62ª edição, na próxima quinta-feira (26), Jabuti encontrou uma forma particular de dar conta da enorme produção nacionalAndré Ávila / Agencia RBSPor Bernardo Bueno Coordenador da graduação em Escrita Criativa e professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS Minha aposta é a seguinte: durante os próximos 10 anos, a literatura brasileira vai atingir algum tipo de "massa crítica" e dar um salto de qualidade e visibilidade. É a minha aposta pessoal, considerando a quantidade de oficinas, comunidades online e cursos em universidades. A proliferação de ecossistemas de escrita que encorajam a experimentação e a troca intelectual vai dar origem a uma nova fase literária. Mais do que isso: acredito que essa explosão criativa virá mais forte do lado especulativo, fantástico, insólito. Já esbarramos no primeiro problema: como chamar esse tipo de literatura? Na PUCRS temos um curso de graduação em Escrita Criativa e, quando criamos uma disciplina que desse conta do lado "não realista" da literatura, decidimos chamar de "Literatura de Massa". Ali estudamos best-sellers e, talvez principalmente, a fantasia, a ficção científica, o horror e suas variantes. O tempo é curto para tanto assunto, mas é um começo. É o melhor nome para a disciplina? Talvez não, mas resume um pouco de tudo que queremos abordar. Talvez o nome da coisa importe menos que seu conteúdo. Talvez. Pensamos em chamar a mesma disciplina de "Literatura de Gênero" mas, se no inglês há gender (masculino, feminino, não binário) e genre (tipo ou família), no português temos gênero e gênero. Está feita a confusão: se falamos "literatura de gênero", estamos falando de tipo ou identidade? A questão de separar a literatura em categorias nunca deu muito certo, mas às vezes é preciso. A nova categoria do prêmio Jabuti, "romance de entretenimento", como algo diferente do "romance literário", gerou certa polêmica. Há quem diga que não concorda, que Saramago também pode ser lido como entretenimento, que um livro de fantasia também pode ser literário, que as duas categorias geram certa oposição. Eu estou feliz que o Jabuti tenha ampliado seu olhar. Repita comigo e aplique o mantra em todos os aspectos da sua vida: diversidade é bom. Minha questão maior não é chamar uma categoria de "entretenimento", mas chamar a outra de "literária", dando a entender que o que não se enquadra nela não é literatura. Isso se espelha na mesma questão em língua inglesa, onde geralmente se opõem genre fiction ("ficção de gênero", como fantasia ou policial) e literary fiction ("ficção literária", como os livros realistas de Ian McEwan). Na tradução, como vimos, saímos perdendo. Gosto de pensar em gêneros como famílias de textos. Só de olhar, dá para ver as semelhanças entre meus irmãos e eu, mas temos personalidades, vivências e opiniões diferentes. Porém, pertencemos à mesma família. Meu pai e meus tios são advogados. Isso não me impediu de seguir uma carreira literária. Gênero e categoria dizem respeito a influências e tradições. Não devem ser uma prisão. Pensando nessa linha, eu gosto de categorias. Elas nos ajudam a identificar a família de um texto e em qual tradição literária se encaixa. Mas é preciso confiar que seremos prudentes e capazes de refletir: saber que a definição não é, bem... definitiva. A única resposta possível é seguir refletindo. Mas há sugestões: eu chamaria de romance realista e romance especulativo. Há quem prefira insólito como alternativa para especulativo; há quem prefira romance fantástico. Se formos ser ainda mais audazes, que tal não ter categoria nenhuma? Hoje em dia, só definir o que é um livro já é difícil (é o objeto impresso? Um conceito independente do suporte, que pode ser lido em e-readers, computadores ou celulares? Se eu compro um audiobook, eu leio ou escuto um romance?). Temos visto, nos cursos de graduação e pós-graduação, um aumento no número de projetos que lidam com o insólito, a fantasia, a ficção científica, distopias, o medo e os monstros. Seria um sinal de que o realismo não dá mais conta das questões que queremos expressar? Ou seria um reflexo de uma maior abertura por parte da academia, dos cursos de escrita, professores e orientadoras para projetos, que saem, cada vez mais, de suas zonas de conforto (definindo "zona de conforto", aqui, como "cânone literário ocidental")? Full disclosure: fui orientador da Irka Barrios e oriento hoje a Karen Soarele, duas autoras que entraram na lista de finalistas do prêmio Jabuti. As duas trouxeram esse toque da fantasia, insólito e horror, para o mestrado em Escrita Criativa da PUCRS. Junto a mais escritoras e escritores, pertencem a uma onda renovada da literatura brasileira contemporânea - aquele movimento que eu mencionei no primeiro parágrafo. Convenhamos: em termos de técnica literária (linguagem, voz, tema, clareza, verossimilhança, trama, personagens), importa se um livro é ficção científica ou realismo contemporâneo? E ainda: qual a obrigação de uma obra nascer pertencendo a um gênero? Posso gostar de Elena Ferrante, Luis Fernando Verissimo e Jorge Luis Borges; minha escrita pode misturar Jennifer Egan e Ursula K. Le Guin; posso sonhar em escrever um romance com robôs gigantes tipo anime japonês com uma pegada meio terror Robert Chambers, não posso? O mundo é diverso, a literatura é plural: literaturas. Outros artigos publicados no caderno DOC