20/07/2017 Zero Hora Sua vida Pg. 30 Oito lugares e suas histórias sinistras MARCADOS PELA BRUTALIDADE DE CASOS CÉLEBRES, alguns locais alimentam sentimentos e fantasias no imaginário popular dos porto-alegrenses Lugares insuspeitos – como uma praça arborizada, uma vistosa mansão no Moinhos de Vento e uma simpática via do Centro – escondem passados sangrentos: enforcamentos, cárcere privado, tortura e até linguiça de gente estão entre os acontecimentos sinistros que teriam ocorrido nesses e em outros pontos da Capital, assombrando o imaginário popular. Enquanto registros mostram que os casos mais famosos realmente aconteceram, outros nunca foram totalmente esclarecidos. – Há coisas imaginadas, como a história das linguiças de gente da Rua do Arvoredo (atual Fernando Machado). Existia um cara que matava gente, mas não se comprovou que fazia linguiça das vítimas – afirma o historiador Sergio da Costa Franco, autor de diversos livros sobre a Capital. – Pelo menos três cadáveres foram encontrados na casa dele, inteiros. A história que se repete de boca em boca é sempre envenenada pela imaginação. Para o professor de História da PUCRS Charles Monteiro, apesar de haver componentes de ficção, as principais lendas urbanas de Porto Alegre não são apenas fruto da imaginação popular. São acontecimentos reais que chocaram por sua brutalidade, inseridos em contextos históricos específicos, diz Monteiro: – São casos que entraram para a memória urbana, que são brutais, violentos e até absurdos, fazem parte da história e têm explicação histórica. O homem que matou a Maria Degolada, por exemplo, participou de um grupo de soldados que tinha a degola como prática. As pessoas pegam um caso como esse hoje e pensam “como isso acontece?” Mas a barbárie não é à toa. Ela está assentada sobre práticas históricas. ESPANTO CAUSADO POR ALGUNS CASOS AJUDOU A MISTIFICÁ-LOS Conforme Monteiro, boa parte dos casos brutais hoje célebres ocorreram da metade do século 19 até meados do século passado, período que marcou a aceleração do processo urbano na Capital. O espanto causado por alguns deles ajudou a mistificá-los: poucos estavam dispostos a envolver-se com esses eventos, o que fez com que não fossem investigados a fundo. Com a mudança das regras sociais, as histórias ganharam ainda mais peso, segundo o professor, porque passaram a confrontar-se com novos valores, que as tornaram inaceitáveis – o enforcamento de condenados, por exemplo, era permitido pela lei brasileira até o fim do século 19. Ao longo dos anos, livros, peças de teatro e filmes contaram as histórias ou fizeram referência a fatos perturbadores que teriam ocorrido na Capital – oito deles relembrados nesta reportagem. Na visão do pesquisador da PUCRS, contar e recontar casos assim também é uma forma de assimilá-los, para que não se repitam. – O afastamento e a negação são mecanismos de proteção que as pessoas têm – avalia. A LINGUIÇA DE CARNE HUMANA Uma das mais famosas lendas urbanas de Porto Alegre daria inveja em Tim Burton. Conta-se que, no fim do século 19, José Ramos e sua esposa, Catarina Palsen, mataram uma série de pessoas em sua casa, na Rua do Arvoredo – atual Rua Fernando Machado –, no Centro. Após os assassinatos, consta que a dupla esquartejava os corpos e levava a carne a um açougue, no mesmo endereço. No local, o açougueiro Carlos Klaussner fabricava linguiça de carne humana, feita das vítimas de José e Catarina. Vendidas no comércio local, as linguiças teriam tido boa aceitação na Capital. Anos mais tarde, ao tentar encerrar a parceria, o próprio Carlos teria se tornado vítima. A história inspirou livros e peças de teatro, mas nunca foi totalmente esclarecida. Há processos criminais contra José Ramos, mas neles não consta a parte das linguiças de vítimas. Segundo o historiador Décio Freitas, autor do livro O Maior Crime da Terra, faltam páginas nos processos, manuscritos em português arcaico, que poderiam confirmar se a tal linguiça foi mesmo produzida. Onde fica: Rua Fernando Machado, Centro Para visitar: a via é pública A RAPUNZEL DO Alto da Bronze Uma construção em estilo medieval à esquina das ruas Vasco Alves e Fernando Machado foi palco de um romance sombrio mais de meio século atrás. Depois de se divorciar da esposa, no fim da década de 1940, o então político Carlos Eurico Gomes mandou construir um castelo para viver com Nilza Linck, à época com 18 anos, e o filho dela. O que sucedeu nos anos seguintes assemelhou-se ao drama de Rapunzel: obcecado por Nilza, Carlos a manteve prisioneira por quatro anos. A vigilância era tão rígida que o homem a impedia de se aproximar das janelas do prédio. Depois de quatro anos (de 1948 a 1952), cansada do ciúme do marido, Nilza resolveu deixá-lo. Mais tarde, a mulher contou sua história ao jornalista Juremir Machado, que escreveu o livro A Prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze. Atualmente, o local abriga um espaço cultural, com exposições musicais, fotográficas, teatrais e das artes plásticas. Onde fica: Rua Vasco Alves, 432 Para visitar: o local realiza eventos em datas pontuais Informações: (51) 3012-0983 A DEGOLA DE MARIA Antigo Morro do Hospício, a Vila Maria da Conceição foi cenário de uma tragédia no fim do século 19. Maria Francelina Trenes, que namorava o soldado da Brigada Militar Bruno Soares Bicudo, foi morta pelo homem no local. Segundo o processo judicial da época, os dois estavam com amigos quando começaram a discutir. A briga acabou em violência: Bruno cortou o pescoço da mulher com uma faca – o que deu à vítima o apelido de Maria Degolada. O soldado foi preso, e o crime ganhou destaque por sua brutalidade. No local, foi erguida uma pequena capela em homenagem à mulher, identificando-a com Nossa Senhora da Conceição. O antigo Morro do Hospício passou a ser chamado de morro da Maria Degolada, e a vila construída no local levou o nome da santa urbana: Maria da Conceição. Os devotos da santa a consideram milagrosa, mas com uma restrição (não atende a preces de policiais). Nem só os bons feitos imortalizaram Maria Francelina Trenes. Dizem que até hoje a alma da moça assombra o morro. Onde fica: a atual Vila Maria da Conceição situa-se no bairro Partenon Para visitar: a visitação é desaconselhada, já que o local há anos sofre sob o dominío do tráfico de drogas A RAPUNZEL DO Alto da Bronze Uma construção em estilo medieval à esquina das ruas Vasco Alves e Fernando Machado foi palco de um romance sombrio mais de meio século atrás. Depois de se divorciar da esposa, no fim da década de 1940, o então político Carlos Eurico Gomes mandou construir um castelo para viver com Nilza Linck, à época com 18 anos, e o filho dela. O que sucedeu nos anos seguintes assemelhou-se ao drama de Rapunzel: obcecado por Nilza, Carlos a manteve prisioneira por quatro anos. A vigilância era tão rígida que o homem a impedia de se aproximar das janelas do prédio. Depois de quatro anos (de 1948 a 1952), cansada do ciúme do marido, Nilza resolveu deixá-lo. Mais tarde, a mulher contou sua história ao jornalista Juremir Machado, que escreveu o livro A Prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze. Atualmente, o local abriga um espaço cultural, com exposições musicais, fotográficas, teatrais e das artes plásticas. Onde fica: Rua Vasco Alves, 432 Para visitar: o local realiza eventos em datas pontuais Informações: (51) 3012-0983 O MATADOURO DE ESCRAVOS Se hoje qualquer um pode circular impunemente sob as árvores da Praça Brigadeiro Sampaio, no fim da Rua dos Andradas, no passado, pisar no local era a certeza do fim para algumas pessoas. Da segunda metade do século 18 até parte do século 19, os escravos condenados à morte eram levados para o local para serem enforcados. Devido à prática da pena de morte no país – extinta no fim do Império –, a praça ficou conhecida como Largo da Forca. Em 1857, ocorreram as últimas execuções na área, que passou a ser conhecida como Praça do Arsenal. Com o fim da Guerra do Paraguai, em 1860, o local mudou de nome mais uma vez: Praça da Harmonia. A Praça Brigadeiro Sampaio foi rebatizada outras vezes antes de receber o nome definitivo, em 1965. É uma homenagem ao patrono da infantaria brasileira. Em 2010, o local onde os escravos eram enforcados recebeu o primeiro marco escultural do Museu de Percurso do Negro na cidade: um tambor gigante, pintado em amarelo e com símbolos da cultura afro. Onde fica: Praça Brigadeiro Sampaio, Rua dos Andradas, no Centro Para visitar: o acesso é gratuito O casarão assombrado Duas mortes ocorridas no começo do século 20 onde hoje funciona o Museu Júlio de Castilhos fizeram a fama de mal assombrado do casarão. Residência do então governador, que vivia com esposa, Honorina, e os filhos, o lugar foi onde o político morreu, em 1903, durante uma cirurgia. Inconformada com a morte do marido, Honorina cometeu suicídio no local anos depois. Aberto à visitação, o museu permite conhecer o gabinete e o quarto de Júlio de Castilhos, além de 8 mil objetos e documentos. É preciso vencer o medo: há relatos de aparição de fantasmas e assombrações. Reforçam a fama depoimentos de que o local, antes da construção do casarão, era onde funcionava o primeiro cemitério da cidade – até hoje os ossos estariam enterrados por lá. Onde fica: Duque de Caxias, 1.205 Para visitar: de terça a sábado, das 10h às 17h A MALDIÇÃO DE UM INJUSTIÇADO Construída por escravos no século 19, a Igreja Nossa Senhora das Dores, no Centro, carrega uma maldição, conforme a lenda. Dizem que um escravo que trabalhava no local foi condenado à morte injustamente e, antes de ser enforcado, ele teria rogado uma praga: seu senhor jamais veria a Igreja pronta. Como a obra levou quase cem anos para ser concluída, há quem acredite que a maldição funcionou e que o fantasma do escravo estaria até hoje assombrando o lugar. Os trabalhos só terminaram em 1904. Tombada em 1938 pelo Patrimônio Histórico, a igreja é a mais antiga da cidade e não escapou à aura que a cercava. Como situava-se próximo do Largo da Forca, o espírito dos enforcados ainda circularia pelo local: há quem diga que sombras e vultos costumam aparecer à noite. Onde fica: Rua dos Andradas, 587 Para visitar: das 8h às 20h (exceto aos domingos, das 12h às 13h) A TRAGÉDIA dos Kliemann O inverno de 1962 foi marcado por um crime obscuro. Esposa do então deputado estadual Euclydes Kliemann, Margit foi morta na mansão onde o casal vivia com as filhas, no Moinhos de Vento. Após 55 anos, o caso não foi explicado. No livro Caso Kliemann – A História de uma Tragédia, o jornalista Celito de Grandi conta que Margit teria sido atacada no alto da escada e golpeada repetidas vezes com um objeto cortante. Euclydes encontrou Margit caída, de bruços, com a cabeça em uma poça de sangue. Apesar da falta de evidências, a polícia suspeitava do deputado e alimentou histórias fantasiosas na imprensa. No ano seguinte, Kliemann foi assassinado com um tiro no peito por um desafeto político em Santa Cruz do Sul. Um sobrinho envolvido em assaltos também foi cogitado como suspeito – teria matado Margit ao ser flagrado roubando a casa dos Kliemann. Onde fica: R. Barão de S. Ângelo Para visitar: o imóvel é privado O AFOGADO DE MÃOS AMARRADAS Sede de uma casa de pólvora do exército imperial no século 19, a Ilha do Presídio fez parte, mais de um século depois, de um dos períodos mais tensos da ditadura. Em 1964, a prisão da década de 1950 foi transformada em centro de detenção do aparato repressivo. Em 1966, depois de sequestrado, preso e torturado durante cinco meses, o ex-sargento Manoel Raymundo foi morto e encontrado nas águas do Guaíba com as mãos atadas às costas. Entre 1965 e 1973, dezenas de militantes de movimentos estudantis e de organizações de resistência foram detidos na ilha, entre eles Carlos Araújo e Raul Pont. Periodicamente, os presos eram enviados à Capital, onde eram interrogados e torturados. Desde 2014, o local integra o Patrimônio Histórico e Cultural do RS. Onde fica: Ilha das Pedras Brancas, no Guaíba (altura do bairro Tristeza) Para visitar: fone (51) 3491-1888