22/05/2011
Zero Hora
Geral | Pág. 28
Clipado em 22/05/2011 07:05:40
A geração movida a Ritalina

Estudantes saudáveis buscam no metilfenidato, conhecido comercialmente como Ritalina, a solução para aumentar seu desempenho nas provas e sua capacidade de concentração. Com isso, colocam em risco seu bem-estar físico e psicológico e ajudam a desenhar uma geração viciada no medicamento

Um surto silencioso, alimentado por comprimidos aparentemente inofensivos, está se alastrando pelos corredores de cursinhos pré-vestibular de Porto Alegre.

Dispostos a tudo para realizar o sonho de entrar na faculdade, estudantes que mal saíram do Ensino Médio arriscam a saúde e se tornam usuários deliberados de um medicamento dotado de uma lista interminável de efeitos colaterais, com um único objetivo: turbinar o desempenho intelectual e superar os concorrentes. Os riscos incluem surtos psicóticos, mudanças bruscas de comportamento e humor e ataque cardíaco.

O remédio em questão tem como princípio ativo o metilfenidato, cujo nome comercial mais conhecido é Ritalina. Surgiu no fim dos anos 40 e, desde então, consagrou-se como um poderoso estimulante do sistema nervoso central, considerado como um dos principais recursos no tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

– É um remédio que funciona muito bem nos casos de TDAH. O problema é que passou a ser consumido de forma indiscriminada e inconsequente, por quem não precisa – alerta o neurologista André Palmini, chefe do Serviço de Neurologia do Hospital São Lucas,da PUCRS.

Em outras palavras, trata-se do que os especialistas chamam de “doping cognitivo”. Se em pessoas com TDAH o metilfenidato é a chance de uma vida normal, em quem não tem a doença substância chega a aumentar a capacidade de concentração em 10% ou 20%. Para vestibulandos à beira de um ataque de nervos,o acréscimo pode significar muito.

–Uso porque quero passar no vestibular. A concorrência é grande. Faz dois anos que tento o curso de Medicina –diz uma vestibulanda de 20 anos, que pede para ter o nome preservado.

Embora a Ritalina tenha a venda controlada, os estudantes não têm dificuldade para conseguir o produto. Basta circular pelos principais cursinhos da Capital para saber onde ficam as farmácias que o comercializam livremente. Há também aqueles que procuram psiquiatras e simulam os sintomas de TDAH para ganhar o remédio.Outros trocam comprimidos em plena sala de aula. Quem não entra no jogo, acha que pode ficar para trás e acaba cedendo.

– O pior é que há cursinhos e até pais que estimulam. Nós fazemos de tudo para evitar e tentamos alertar para os riscos – afirma a psicóloga Márcia Fischer Vieira.

Uma das estratégias adotadas para enfrentar a batalha, segundo Márcia, é um programa de acompanhamento feito sob medida para os vestibulandos. Na base da conversa, eles trabalham seus medos e angústias.Versão semelhante é oferecida aos pais, muitas vezes tão tensos quanto os filhos. A luta,porém,está longe do fim.

Enquanto não se derem conta da gravidade do problema,acredita o psiquiatra Eugênio Grevet, coordenador de pesquisa do Ambulatório de TDAH do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, os usuários continuarão testando limites. E arriscando suas vidas.

O diagnóstico banalizado

Muitos dos usuários do metilfenidato começaram cedo, ainda na escola. Na última década, uma espécie de modismo tomou conta de instituições de ensino: de uma hora para a outra, crianças e adolescentes passaram a ser taxados de “hiperativos” por pais, professores e diretores. A banalização do diagnósticos de TDAH acabou contribuindo para que muitos pacientes, mesmo passando pelas mães de psicólogos e psiquiatras, usassem o remédio sem necessidade.

É o que mostra um estudo desenvolvido por pesquisadores de quatro instituições, entre elas a Universidade de São Paulo (USP) e o Albert Einstein College of Medicine (EUA), cujos resultados serão apresentados no fim deste mês no 3º Congresso Mundial de TDAH,em Berlim,na Alemanha.

Após ouvir 5,9 mil estudantes brasileiros de quatro a 18 anos, os estudiosos concluíram: quase 75% daqueles que tomam metilfenidato tinham diagnóstico errado. O que muita gente não sabe é que o risco de dependência é alto.

– Não é exagero dizer que, a exemplo do que já ocorreu nos EUA, podemos estar vivendo a iminência de uma epidemia de metilfenidato no país – reconhece o psiquiatra Marcelo Victor, da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul.

A chamada “geração Ritalina”, que agora chegou aos cursinhos pré-vestibular, é apenas uma parte do problema. Nas universidades, não é incomum o uso do estimulante antes de provas. Nos cursos preparatórios para concursos,o cenário se repete.

Nem todos obtêm o medicamento de forma ilegal. É cada vez maior o número de pessoas que, abertamente, procura psiquiatras e neurologistas com o propósito de obter o estimulante sintético.A questão alimenta discussões da Associação de Psiquiatria do Estado.E,por enquanto,segue sem resposta.

“É a bola da vez da indústria farmacêutica”
ENTREVISTA - José Outeiral, psiquiatra

Conhecido pelas opiniões fortes, o psiquiatra gaúcho José Outeiral, 62 anos, faz um alerta: o uso indiscriminado do metilfenidato, que considera “a droga do momento”no Brasil, já causa mortes precoces no país. Autor de livros como Adolescer e Adultecer, Outeiral recebeu Zero Hora em seu consultório, no bairro Independência, na Capital, na tarde de quinta-feira. Confira os principais trechos da entrevista:

Zero Hora – Como o senhor avalia o uso do metilfenidato (Ritalina) no Brasil? Está havendo um excesso?

José Outeiral – Dia desses uma mãe telefonou para meu consultório e perguntou:“O senhor trabalha com Ritalina?”. Ela queria uma receita para o filho. Já tinha o diagnóstico da escola. Eu disse que não. “Trabalho com crianças”, respondi. Não sou um prescritor. A verdade é que déficit de atenção virou moda, e a Ritalina, também. É a bola da vez da indústria farmacêutica.

ZH – Nos cursinhos pré-vestibular, a Ritalina virou uma febre. É usada para melhorar o desempenho. O que o senhor acha disso?

Outeiral – Na nossa sociedade, tu não podes ser um “looser”, um perdedor. É preciso ser vencedor a qualquer custo. Isso é reflexo do mundo narcisista e da barbárie em que vivemos. No caso do metilfenidato, o que se critica é justamente esse abuso. É claro que é um medicamento muito bom, mas para quem realmente precisa. E só uma parcela pequena realmente precisa. A Ritalina fugiu do controle.

ZH – Mas esse medicamento não é um dos mais controlados?

Outeiral – Há um receituário especial, que só alguns médicos têm. Mas a farmácia aqui na esquina, por exemplo, vende sem receita. Além disso, os médicos são estimulados a receitar a medicação. Nos anos 60, 70, era assim com o Valium. Depois, o Rivotril. Agora, a Ritalina.

ZH – Quais são os riscos?

Outeiral – A Ritalina não é uma medicação leve. Já se proliferam os casos de crianças e adolescentes que sofrem ataques cardíacos em função do remédio e morrem precocemente. Não é brincadeira. Já está acontecendo.

1 O que é a Ritalina?

É um medicamento da família dos estimulantes, como as anfetaminas, cujo princípio ativo é o metilfenidato. A substância também é base da Ritalina LA e do Concerta. É usada principalmente no tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

2 Quando surgiu?

Em 1944, o químico suíço Leandro Panizzon sintetizou o metilfenidato. Desde então, o nome comercial mais conhecido
é Ritalina, em homenagem à sua mulher, chamada Rita. No Brasil, além da Ritalina, são comercializadas a Ritalina LA e o Concerta.

3 Quais são os principais riscos?

Dependência química e psicológica, irritação, Agressividade, dor de cabeça, tontura, mudanças de comportamento, insônia, aumento da pressão, arritmia, ataque cardíaco, depressão, transtorno bipolar e surtos psicóticos.

4 Quais são principais benefícios?

O medicamento aumenta a capacidade de concentração, tira o sono e dá ao usuário a sensação de ter mais energia. Por isso acaba atraindo quem precisa se concentrar nos estudos.

5 Esse remédio pode causar dependência no usuário?

Sim. O uso desta substância sem acompanhamento médico pode resultar em dependência tanto química quanto psicológica por parte de seu usuário.

6 Os riscos são maiores do que os benefícios?

Em quem tem TDAH, os benefícios são maiores do que os riscos. Em pessoas que querem melhorar o desempenho, o sistema responsável pela concentração recebe uma sobrecarga, que pode acabar mal. Os riscos são considerados maiores.

7 A Ritalina tem a venda controlada?

Sim. Apenas especialistas autorizados, que tenham receituário especial (do tipo A, de cor amarela), podem prescrever o medicamento. Apesar disso, o remédio circula no mercado paralelo.

8 O que é TDAH?

É a sigla para Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, uma doença cujos principais sintomas são desatenção geral, impulsividade e dificuldade de parar quieto e se concentrar. Para saber se você tem a doença, procure um especialista.

"Usei Ritalina para terminar a monografia. Comecei tomando meio. Não tomava um inteiro, porque não me sentia bem. Era muito forte, e eu ficava séria demais, não sorria, não tinha senso de humor, tirava a fome, tirava o sono. Com meia dose, eu rendia, mas sem ficar estranha. Deu resultado, mas eu me sentia um robô.”

Universitária de Porto Alegre 25 anos

"Comecei a tomar Ritalina há um ano. Falei com a minha mãe, e ela achava que eu não devia tomar, mas depois cedeu. No começo, tive dor de cabeça e fiquei com o pé atrás. Fui a um neurologista. Agora tomo a dose mínima. Quanto tomo, sinto que produzo bem mais. Acho que isso vai me ajudar a passar no vestibular.”

Vestibulando de Porto Alegre, 19 anos

Box "Entenda como age o metilfenidato (Ritalina, Ritalina LA e Concerta)", ver imagem.

FOTO: Estudante de 20 anos, que prefere não se identificar, diz que começou a tomar a substância por conta da alta concorrência no vestibular